030: extrovertidos

zine king kong feita na oficina

Novembro esta sendo muito bom. É quase verão em absoluto. O Brasil ganhou. As férias ainda não acabaram e aquele trabalho de teoria que eu tava me matando pra escrever e tinha certeza que ia tirar o minimo, (certeza que a professora nem leu) foi o máximo. Esta tendo feira do livro aqui e fui em quase todos os dias porque quase todos os dias tem oficina. Já teve de quadrinhos com a Guti (que eu sou muito fã!), de serigrafia com a Amanda e de zine com a Ana e todas elas são demais!

Quarta-feira, no feriado, tinha a oficina de serigrafia e todos que falaram que iam ir comigo mudaram de ideia e eu sou muito patética e não queria ir sozinha de jeito nenhum. Num ato de desespero compartilhei o cartaz da oficina perguntando se alguém queria ir comigo. Na hora pensei que o pior que poderia acontecer seria ninguém responder, esqueci completamente que algum maluco poderia dizer "vamos!", felizmente nenhum maluco mandou nada mas algumas pessoas legais (que eu suspeitava serem legais, na verdade nunca tinha falado grandes coisas com nenhuma dela) toparam. 

Agora uma contextualização dos eventos que antecederam esse, da onde eu conhecia essas pessoas, mostrando como o mundo e a vida dão muitas voltas e encontros:

Era a primeira vez oficial que eu ia a Cinemateca Capitólio, porque era a primeira que assisti uma sessão completa, um dia de apresentação da cidade para uma visita especial. Era julho. Na saída do cinema encontrei Léo, um amigo, com mais uns outros guris que não conhecia e eles estavam indo para a festa de aniversário de um amigo de um deles num bar com karaokê ali perto, o Mondo Cane. A gente foi com eles até lá porque era caminho, mas não ficamos porque não conheciamos ninguém. Um dos amigos dos amigos que estava indo, o Vicente, perguntou o que achavamos que vinha primeiro: o corpo ou a alma. Eu disse alma e ele disse que também achava que era mas quase ninguém tinha falado ainda. Essa foi a conversa que tivemos.

A umas duas semanas atrás ele me convidou para participar de uma exposição de prints que estava organizando num bar-café aqui perto e claro que concordei porque sempre quis participar de algo assim. A exposição ia ser aberta junto com uma festa fantasia de Halloween que não consegui ir porque tive que voltar para Osório pra votar. E ele foi a primeira pessoa que disse vamos pro convite da oficina, a gente se encontrou no mesmo bar-café e conversamos sobre esses eventos e sobre fazer filmes, e ele estava fotografando de uma forma meio voyeur, como ele mesmo disse, os desocupados com bandeiras do país que lotavam o centro. 

filme: Velvet Goldmine (1998)

O segundo que pilhou ir foi o Gabriel. A gente se conheceu na internet mas não sei exatamente como, uma vez me mandou mensagem perguntando se os coelinhos eram meus e que adorava eles e volta e meia a gente trocava umas palavras muito rapidamente. Ele é da música e a primeira vez que o vi pessoalmente foi quando tava procurando algum conhecido para furar a fila do RU e a gente se deu oi e ele não perguntou se eu queria um furo, então tive que virar a esquina até o fim da fila. Talvez ele seja correto demais, pensei. Ele gosta de tirar fotos de lugares e explorar cantos escondidos e encontrou a gente na feira do livro. Nenhum de nós se conhecia e foi surpreendente divertido propor algo, estranhos toparem, conhecer gente nova e estar bem com tudo isso. 

No fim da oficina o Vicente foi embora e eu e o Gabriel estavamos sem nada pra fazer. Fomos no Café Cantante, onde uma amiga minha trabalha, mas ela voltou para Minas para passar as férias. Nunca tinha ido lá e estava super cheio. Tomamos moca. Passeamos pela redenção e conversamos um monte. A mãe dele era musicista, tocava piano e morreu quando ele era muito pequeno. Depois fomos encontrar a melhor amiga dele no Capitólio, ia passar o filme favorito dela,  Velvet Goldmine. Uma fanfic não autorizada do David Bowie com o Iggy Pop, um ode ao glam rock. Encerramos o dia jantando em um lugar de comida italiana que havia aberto a recem, não tinha nem nome ainda. Eles comeram massa e eu não comi nada porque estou economizando, então o chef (de cozinha e do lugar) me deu uma porção de batatas rústicas, que ele disse que não eram rústicas era outro nome que não lembro mais. O dia foi ótimo, fiquei ate contente que as outras pessoas que convidei cancelaram. 

Depois, quando já tinha até acabado a oficina vi que mais gente queria ter ido. É muito bom achar pessoas que se empolguem com as mesmas coisas que tu, se essas pessoas fossem tão faceis de encontrar como foi. Isso sempre me lembra o fim de Vírus Tropical. 

filme: Velvet Goldmine (1998)

Sexta-feira um amigo que a muitas semanas não nos viamos me chamou para ir a um sarau num café, com o Ernesto, que é bem legal e gente boa mas diz que tem dificuldade pra sair. No ínicio os textos e poemas pareciam escritos por meninas góticas de 13 anos, o que foi bom pra rire e inspirar a coragem de se expor. Depois foi uma mulher que tinha um sotaque que eu não conseguia distinguir se era esapanhol, italiano ou algo meio colonial, como os tios velhos e falsos imigrantes da minha mãe falam. Era bonito, e fez eu me perder tanto que nem lembro exatamente sobre o que era a poesia. O penultimo que leram eu adorei tanto que pedi a menina que me mandasse e vou deixar aqui. O último também queria ter pedido mas não vi mais a autora, era um texto cômico de teatro sobre uma judia explicando o porquê gostava de apanhar. 


Ladrar ou morder
de Marina Luz

Morder dói os dentes. Não sou uma mulher de muitas fúrias. Raiva me estressa. Afinal, raiva é para ser estressante. É uma parte intrínseca dela. Não há raiva sem o estresse. Assim como não há alegria sem os sorrisos e a morte sem o nada.

Meu corpo não aceita a raiva, não se acostumou a ela. Quando considero a possibilidade de quebrar algum objeto ou alguém, me desgasto a tal ponto que adoeço. Cistite, tendinite, gripe, enjoo, pé torcido, unha encravada, dor. Nem sei onde machuca, mas algum lugar vai estar doendo.

Mesmo que a enfermidade não venha, alguma coisa em meu corpo me assombra. Uma semana estressada me deixa um mês atrasada na menstruação. Aí me estresso de novo por considerar comprar um teste de gravidez e fico mais um mês atrasada. Porque eu tenho vinte anos, não posso ter um filho. Sou muito jovem. Nem sei quanto custa um aborto. Para quem eu perguntaria se eu quisesse abortar, para quem eu falaria se eu não quisesse abortar. Gravidez está fora de questão, meus peitos cairiam e eles já são pequenos. Pequenos e caídos é algo inaceitável. Ser uma mãe de vinte anos com peitos pequenos e caídos é inaceitável. Daí chego na farmácia e não encontro o teste. Finjo que sou madura, que não tenho vergonha de nada e pergunto para a farmacêutica se eles têm teste de gravidade. Mas teste de gravidade não existe e eu acabo de expor para a farmacêutica que eu, sim, estou tão apavorada que não sei falar e que, sim, não quero que tenha uma criança crescendo na minha barriga. Pergunto de novo. Gravidez, desculpa, onde ficam os testes de gravidez. Vou para casa, me enfio no banheiro e o teste dá negativo. Mas depois de todo esse nervosismo tenho que esperar mais um mês para a menstruação descer.

Depois de tanto tempo acumulando sangue no útero, a cólica é um inferno. Faz da minha barriga pano para esfregar o chão e, depois de ensopá-lo todo, torce e contorce ele até a última gota. Tomo três Ponstan, me enfio debaixo da cama, abraço uma bolsa de água quente e xingo a razão para eu ter me estressado em primeiro lugar.

O corpo implora para eu não ter raiva, para eu não me estressar. E faço tudo o que posso para acatar seu pedido. Porque ele me conhece brava, nós dois sabemos que é melhor evitar isso. Tem razões para eu adoecer depois de crises, eu não lido bem com elas.

E nem é porque eu viro um monstro. "Você não quer ver ela brava", essa não sou eu. É interno. É comigo. Se eu ficasse puta, destruísse um prédio e isso fosse o suficiente para me desestressar, seria perfeito. Mas a raiva não anda sozinha. Ela se gruda na impotência. Fico brava quando não há nada a ser feito e quando não há nada a ser feito, fico mais brava. O ciclo é infinito.

Desde minha infância me enraiveci dessa forma. Dizem que se deve deixar um bebê chorando para aprender a parar sozinho. Eu não parava. Ficava horas me esperneando e cansando até não ter voz para gritar. Meus pais tinham que levantar e me pegar no colo uma hora ou outra.
 
Quando criança, só fiz birra uma vez. Daquelas de me jogar no chão em público e fazer a mãe passar vergonha. Ela me colocou debaixo do braço e me tirou do shopping, nem aí para minha tentativa de chamar atenção. Parei, nunca mais fiz. Mas lembro ainda da raiva que me fazia berrar em meu quarto, os soluços e a dor de cabeça que vinham logo depois. Lembro que a raiva era algo que entupia os ouvidos. A pele me deixava claustrofóbica e me vinha uma necessidade de destruir algo. Como se isso fosse minha forma de me livrar da epiderme e me ver livre, poder respirar. Mas criança é fraca, não destrói nada com facilidade. E minha braveza não me deixava burra, sabia que se eu quebrasse algo levaria bronca. Eu queria cessar minha raiva, não incentivar a de minha mãe.

Então vem a necessidade de quebrar, mas não poder. A impotência vem e aperta a garganta. Pego um travesseiro e começo a socá-lo. Não adianta. Travesseiro não morre, não rasga. Bato ele contra o chão, o arremesso contra a parede. Passo a ofegar, meus braços cansam. Estou perdendo para um travesseiro. Sou uma estúpida, ridícula e o mundo é horrível e eu só quero me encolher no chão e gritar até tudo passar. Que ódio, que saco, que droga.

Tem um filme infantil chamado Anastasia. Sobre uma princesa perdida da Rússia que perde a memória. Dois homens não sabem que ela é a princesa de verdade, mas querem fingir que ela é para ganhar o dinheiro da recompensa que a avó da moça ofereceu para encontrá-la. No dia em que Anastasia ia finalmente tentar se provar como a verdadeira princesa, ela está muito nervosa. A levam para uma ópera, em que passa o espetáculo todo com o folheto na mão o rasgando em pedacinhos.
É um momento curto do filme. Apenas para mostrar que Anastasia está ansiosa para que o boyzinho dela segure sua mão e a acalme. Mas eu vi como um mecanismo. Afinal, eu sou mais forte que um pedaço de papel. É barato, substituível e não faz falta. Rasga fácil, que é o mais importante. Formando duas pinças com meus indicadores e polegares e puxando o papel para lados opostos, o papel se divide em dois. Depois em três. Quatro, cinco. Devagar, rasgo aos poucos, destruo com cuidado, sentindo o estrago. Há um controle, eu controlo. O mundo pode ser mais forte que eu, mas o papel é fraco. Dele, eu venço.

Até os dias de hoje uso essa técnica. Levanto de onde estou, vou ao banheiro, pego uma folha de papel daquelas para secar a mão e rasgo em tiras. Bem finas. Até minhas narinas voltarem a funcionar e eu conseguir inspirar e expirar sem querer me arremessar pela janela. Até eu me encaixar em minha pele e meus ombros conseguirem sua locomoção de volta.

Meus problemas não vão embora, mas minha cabeça também não fica presa em um único pensamento.
Ela se amplia, respira e relaxa. Não que relaxar seja a ação mais saudável a se tomar.

Mas se eu não decidir se quero estar relaxada ou furiosa, nunca vou me satisfazer. Tenho consciência de que, pelo jeito que raciocino, nada estará bom. Mas tanto quanto há lógica em buscar tranquilidade, também há na busca da inquietude (infelizmente). Porque se eu estivesse brava, estaria por uma razão. O estresse ocorre exatamente para incentivar a resolução das mazelas. Ignorá-lo ao contornar o problema através de técnicas meditativas poderia ser visto como uma escapatória fácil. A alternativa de um covarde. Porque seria afirmar que eu recuso lutar contra o mundo por medo. E que prefiro que meu adversário seja o papel, um fracote que nunca me fez mal.

Mas tenho medo, não é mentira. Apavorada de ter uma criança em minha barriga, de ter peitos pequenos e caídos, de passar vergonha na frente da farmacêutica, eu tenho medo da raiva. Tanto que fujo dela através de enfermidades e menstruações que atrasam. Tanto que prefiro não gritar com alguém que me fez mal e cortar contato sem oferecer justificativa. Tanto que nunca mais fiz birra em shopping.